Eu nunca vou me esquecer daquele seu olhar.
Tanto tempo falando da foto que não fiz...Um ensaio sobre a minha cegueira.
Fim de tarde no arquipélago, paredes amarelinhas, tua magreza, a camisa branca, tua cara idem, o Sol amigo das trancinhas do teu cabelo desgrenhado, minha mochila, Hopper assinando ali no canto, Vermeer com inveja.
Teus ossos.
Aquele Cheetos vai desaparecer, o teu vacilo revelador dos “Bretas Dates”, teu rosto vacilante, meu silêncio escorpiano, a represa depois do Bahamas, os olhares nos filmes imaginários da Rio Petrópolis, as fotos do pedido de casamento, o shopping Independência era sempre o mais perto, lembra?
Toda a superfície terrestre, incluindo as altas montanhas e as fossas abissais, do açaê e do cafêa, o meu paladar infantil, eles jamais serão vistos novamente, Fritura.
Sumirão tuas cristas ilíacas, os olhos em cima daqueles nacos da bunda, roupas de brechós, a surpresa com a foto do Farol, os sete cliques das luzinhas de Natal, você nua na luz quente, a água fria com a resistência queimando, nossas padarias e teus uniformes…
A cantoria no chuveiro, a fresta calculada nas tuas costas, o arrepio da pele, do banho correndo para o sofá, a quina gostosa da cozinha, dos sussurros sacanas, da botinha pelo corredor, do escapamento das motos, caminhões e latidos, da besta fera canina, e o "agora eu vou demorar a responder, tá?"
As décadas de atraso nos filmes e aquele teu sorriso indignado, do meu olhar abobalhado, da foto dos pés no filme errado, dentões brancos, do encaixe do maxilar, "come algo, você tá bem?", do brinco crocante, do tímpano estapeado próximo ao teu pescoço enforcado.
Tudo vai desaparecer!
O Rio Tsai com os beijos gelados de puta, da pipoca no Stremio engasgado, daquele desenho do cavalo engraçado, do barulho do desmaio e de acordar na cozinha, dos cogumelos salvadores, de você preocupada, comigo e com inúmeras mensagens de texto…
Nunca te falei, mas de um tempo pra cá, não havia só você nas fotos, mas você, um desespero e sempre o celular.
Sabe o teu "e aí" com as mãos espalmadas, my black? Vai tudo sumir, junto do resto das histórias, fica o pior do silêncio compartilhado, os planos secretos com lençóis lavados, "arruma tuas coisas, roupa de frio", das mochilinhas e conchinhas, da composteira, amendoeira, da estação de trabalho, da única flor na janela, dos áudios gigantes monopolizados, do cão adotado, Don Hugo de la Cruz, uma desculpa peluda, o coitado.
Nada disso será mais lembrado.
Dos bilhetinhos leves do bolso, mas esmagando a tua alma, toda tua covardia, os estúpidos afetos de falsa prudência, da caixinha de música, do teu suor!
Como me esquecer do teu suor??
E do teu discurso surrado.
Os ralos pelinhos do suvaquinho, das duas caras do norte e do sul, do arrepio da perna, emudece a voz atropelada, "bom dia, dormiu bem?", o quarto entulhado, a extensão na cozinha e o 1 min do microondas.
As teias de aranha iluminadas por trás, do jeito que adoro.
Não ficaremos mais no modo barranco, sem sanguinho nem copinho, vou ter que me esquecer do inesquecível: da carninha transbordando no teu dedão do pé, teus dedos orbitando em mim, da chinezinha com a boca e olhar arregalado, teus dois pés no meu peito e vendo as “tramp stamps” tão eloquentes, como se você precisasse de marcação…
Preciso esquecer do desprezo por si mesma, daquelas carninhas da mão, "Não morde forte!", dos dedinhos sem unha, dos pixels vermelhos, da tua insegurança com joguinhos infantis e do descarte narcisista.
Eu vou ter que me esquecer que te aceitei como era, do Happy Summer Fields e das Great Walls of Invisibility, dos vários estagiários, dos muitos documentos, da Barbie com seus amigos, da falta de tempo inexistente.
Só não consigo me esquecer daquele olhar, então esqueço que preciso escrever para não esquecer:
O Uber branco com 400 dias na mala, um beijo seco de viagem, eu não tinha me preparado para nunca mais te ver, o aceno de Noronha de novo, você mais perto da janela, a escolha pelo silêncio brutal e covarde, a visão que qualquer mamífero entende.
Teu prazer no lento preparo, as mini frases soltas como se não estivesse entendendo, a doutora em acústica escolhendo como mensagem, depois do mimetismo arguto na cozinha, a recusa do som e a certeza do nunca, de escolher para me ferir uma imagem, igual aquelas que dizia curtir ao meu lado…
Uma orca doente, afogando em um lodaçal, sozinha num FIAT, com teu vidro imundo como aquário.
Caso você tenha chegado até aqui sem entender muita coisa, em postagens passadas eu fiz essa enquete e o resultado foi surpreendente:
Resolvi colocar alguns textos e poesias que escrevi, junto das fotos, sair um pouquinho da técnica, técnica, técnica, porque ando bastante de saco na Lua com mentores, gurus e especialistas de porra nenhuma que assolam o Instagram e outras mídias sociais.
E acredito piamente que escrever, ler e sair um pouco da redoma em que se transformou a fotografia é a saída para essa insanidade midiática emocional cheia de gatilhos inúteis diante do maior gatilho de todos: uma imagem.
Comenta aqui o que achou!
P.S: quando poesias/textos aparecem aqui, o número de leitores que abandonam a Obscura é recorde..rs..caso você tenha resistido, aqui tem mais uma: