Martin Parr: A Genialidade que Transformou o Banal em Arte
O fotógrafo que ensinou o mundo a enxergar beleza na vulgaridade morreu aos 73 anos, deixando um legado impossível de ignorar
Martin Parr morreu sábado passado, em sua casa em Bristol, aos 73 anos. A notícia foi confirmada pela Magnum Photos e pela Martin Parr Foundation. Ele deixa sua esposa Susie, sua filha Ellen (chef renomada), sua irmã Vivien e seu neto George. A causa oficial não foi divulgada, embora Parr tenha revelado em 2021 que havia sido diagnosticado com mieloma, um câncer hematológico que afeta a medula óssea.
Com sua morte, a fotografia perde não apenas um de seus mais importantes documentaristas, mas o homem que, talvez mais do que qualquer outro, redefiniu o que significava fazer fotografia documental na segunda metade do século XX.
O Menino que Queria Ser Fotógrafo
Nascido em Epsom, Surrey, em 1952, Martin Parr decidiu aos 14 anos que seria fotógrafo. A inspiração veio de seu avô, George Parr, fotógrafo amador e membro da Royal Photographic Society. Mas foi ao estudar na Manchester Polytechnic, nos anos 1970, que Parr encontrou sua verdadeira linguagem fotográfica ao descobrir o trabalho de Tony Ray-Jones, fotógrafo que documentava a vida cotidiana britânica com humor e compaixão.
É Martin Parr em preto e branco, será tema de mais um post aqui na Obscura.
Parr começou fotografando em preto e branco, seguindo a tradição documental britânica. Mas algo mudou nos anos 1980. Inspirado pelos americanos William Eggleston e Stephen Shore, ele fez uma escolha radical que dividiria críticos e público: passou a usar filme colorido saturado e flash de anel — ferramentas da fotografia comercial — para documentar a vida comum.
Era heresia, mas era genial.
The Last Resort: A Obra que Mudou Tudo
Entre 1983 e 1985, Parr visitou repetidamente New Brighton, uma decadente estação balneária perto de Liverpool. O resultado foi The Last Resort (O Último Refúgio), o livro que o consagraria como um dos fotógrafos mais importantes — e controversos — de sua geração.
As imagens eram chocantes na sua honestidade brutal: famílias da classe trabalhadora tentando se divertir em uma praia sem areia (substituída por concreto), comendo batatas fritas gordurosas, cercadas de lixo, sob um sol implacável capturado pelo flash direto de Parr. As cores eram saturadas até o limite do grotesco. Os corpos, imperfeitos. A realidade, nua.
Quando o trabalho foi exibido na Serpentine Gallery em Londres, em 1986, a reação foi explosiva. Críticos o acusaram de crueldade, de voyeurismo, de humilhar seus retratados. Outros viram nele o mais importante retrato da Inglaterra thatcheriana — um país em decadência econômica e social, mas ainda buscando prazer onde podia encontrá-lo.
Parr, impassível, declarou: “Percebi muito cedo que a controvérsia não me faria mal algum.”
Roberta Tavares, amiga e excelente “esclarecedora visual”, resumiu a importância de Parr em seu valioso instagram, siga-a!
Com o tempo, a história provou que ele estava certo. The Last Resort é hoje considerado um dos livros de fotografia mais influentes do século XX, escolhido pelo The Guardian em 2008 como uma das “1000 obras de arte que você precisa ver antes de morrer”.
A Estética Parr: Kitsch, Consumo e Humanidade
O que tornou Martin Parr único não foi apenas sua paleta de cores — saturadas, quase agressivas — mas sua capacidade de transformar o trivial em revelador. Ele fotografava o que todos viam mas ninguém considerava digno de atenção: sanduíches de bacon encharcados, pés em chinelos de pelúcia, sorvetes derretendo, turistas constrangidos, filas de supermercado, feiras de artesanato.
Sua obra era um comentário mordaz sobre consumismo, identidade nacional, turismo e cultura de massa. Mas também era — e isso é crucial — profundamente humana. Parr nunca desprezava seus retratados. Ele os via com uma mistura de ironia, afeto e melancolia que só um verdadeiro observador consegue capturar.
Em Common Sense (1995-1999), série fotografada com lente macro e flash de anel, ele documentou objetos do cotidiano global — junk food, bijuterias kitsch, roupas cafona — em close-ups tão detalhados que se tornavam quase abstratos. O resultado era simultaneamente hilário e perturbador: uma crítica feroz ao consumismo global embalada em cores tão vivas que pareciam publicidade.
Em Think of England (2000), ele compilou todos os clichês possíveis da identidade inglesa — meias com sandálias, cabines telefônicas vermelhas, chá com biscoitos, chapéus extravagantes em Ascot — e os transformou em um mosaico simultâneamente afetuoso e satírico de sua própria cultura.
Magnum Photos e o Legado Global
Em 1994, Martin Parr entrou para a Magnum Photos, a mais prestigiada cooperativa de fotojornalismo do mundo. Sua admissão foi controversa: Henri Cartier-Bresson, um dos fundadores, tentou bloquear sua entrada, declarando que Parr vinha “de um planeta totalmente diferente”. O comentário não era um elogio — mas Parr o guardou como uma medalha.
Entre 2013 e 2017, serviu como presidente da Magnum, ajudando a agência a navegar pelos desafios do mundo digital. Mas sua maior contribuição não foi administrativa: foi ter provado que a fotografia documental podia ser colorida, pop, irônica e ainda assim profundamente relevante.
O Colecionador Obsessivo
Além de fotógrafo, Parr era um colecionador obsessivo de photobooks. Junto com o crítico Gerry Badger, publicou The Photobook: A History, uma obra em três volumes (2004-2017) que catalogou mais de 1.000 livros de fotografia do século XIX até hoje — tornando-se referência obrigatória para qualquer estudioso de fotografia.
Em 2017, vendeu sua coleção de mais de 12.000 livros para a Tate Modern e fundou a Martin Parr Foundation em Bristol, dedicada a preservar e promover a fotografia britânica e irlandesa, com espaço de galeria aberto ao público e um programa de eventos, palestras e projeções.
Mais de 100 Livros, Incontáveis Exposições
A produção de Parr era vertiginosa. Publicou mais de 100 livros ao longo de sua carreira — de Food (comida fotografada de forma grotesca e apetitosa) a Luxury (a vida dos ricos), passando por projetos sobre países tão diversos quanto Japão, Rússia, Coreia do Norte e México.
Suas obras estão em coleções permanentes de instituições como MoMA (Nova York), Tate (Londres) e Centre Pompidou (Paris). Curou festivais de fotografia em Arles (2004) e Brighton (2010), e em 2016 organizou a exposição Strange and Familiar no Barbican, reunindo fotógrafos internacionais que documentaram a Grã-Bretanha.
Em 2021, foi condecorado com a Ordem do Império Britânico (CBE) por suas contribuições à fotografia.
A Influência na Era Instagram
É impossível olhar para o Instagram, TikTok ou qualquer rede social hoje sem ver a influência de Martin Parr. Seu uso de cores saturadas, flash direto, enquadramentos fechados e interesse pelo banal antecipou — em décadas — a estética da fotografia digital contemporânea.
Como escreveu o fotógrafo Joel Meyerowitz, amigo de Parr por 50 anos: “Ele era uma lenda no mundo da fotografia. Sua sabedoria e humor visual serão profundamente sentidos.”
“Somos Todos Ricos Demais e Consumimos Coisas Demais”
Em novembro de 2025, pouco mais de um mês antes de morrer, Parr deu uma entrevista em Paris para o lançamento de sua autobiografia visual. Questionado sobre consumismo, respondeu com sua lucidez característica: “Somos todos ricos demais e consumimos coisas demais.”
Essa lucidez afiada, misturada com humor e crítica social, era a essência de Martin Parr. Ele não apenas documentava o mundo — ele nos forçava a encará-lo sem filtros, sem romantizações, sem mentiras confortáveis.
O Legado: Ver o Invisível
Martin Parr nos ensinou que fotografia documental não precisa ser séria, em preto e branco ou misericordiosa para ser importante. Ele provou que é possível ser crítico sem ser cruel, irônico sem ser cínico, colorido sem ser superficial.
Mais importante: ele nos ensinou a enxergar. A prestar atenção no que passa despercebido. A encontrar beleza — ou pelo menos significado — nos detalhes mais banais da existência humana.
Como escreveu a fotógrafa Diane Smyth, editora do British Journal of Photography: “Um gigante da fotografia, Martin Parr promoveu uma mudança radical na fotografia documental na Magnum Photos. Ele também defendeu outros criadores de imagens, apoiando-os através de sua coleção, atividades editoriais e espaço de galeria.”
Despedida
Martin Parr fotografou até o fim. Em 2024, retornou a New Brighton — cenário de seu trabalho mais icônico — para refilmar The Last Resort, desta vez usando um scooter motorizado devido à sua condição de saúde. O resultado foi documentado no filme I Am Martin Parr.
Ele nunca parou de olhar. Nunca parou de questionar. Nunca parou de nos mostrar quem realmente somos.
Com sua morte, a fotografia perde um de seus maiores mestres. Mas seu olhar — afiado, irreverente, profundamente humano — permanece em cada imagem que criou, em cada fotógrafo que influenciou, em cada pessoa que aprendeu a ver o mundo de forma diferente por causa dele.
Martin Parr não apenas documentou a vida cotidiana, ele a transformou em arte. E nisso, foi absolutamente insubstituível.
“A fotografia é quase uma forma de terapia.”
Para conhecer melhor:
The Last Resort (1986/1998)
Common Sense (1999)
Think of England (2000)
The Photobook: A History (com Gerry Badger, 2004-2017)
Only Human (2019)
Utterly Lazy and Inattentive (autobiografia visual, 2025)









