O Livro Que Muda Cada Vez Que Você O Lê
Como “Sobre Fotografia” antecipou todas as conversas que teríamos sobre imagem nas próximas cinco décadas

É segunda à noite. Você está em casa, provavelmente procrastinando aquela edição que prometeu entregar terça. Deixa eu te contar sobre um livro que vai fazer você questionar cada clique que já deu na vida.
“Sobre Fotografia” foi publicado em 1977. Sim, na era do filme, quando a Kodak ainda era uma gigante e “Insta" era apenas um verbo. E aqui está o assombroso: Susan Sontag antecipou praticamente todas as discussões que teríamos sobre fotografia nas próximas cinco décadas. Cada vez que você abre esse livro, ele parece estar falando sobre um momento diferente da sua própria jornada fotográfica.
A Capa Que Já É Um Ensaio (e um insight)
Antes mesmo de abrir o livro, a capa já está te provocando.
É um daguerreótipo do século XIX — a primeira forma de fotografia comercialmente viável, de 1839. Um casal vitoriano segura um retrato de família. A mulher olha diretamente para você. O homem olha para frente, sério, como se posasse para a eternidade.
Você está segurando um livro com uma foto de pessoas segurando uma foto. Meta-fotografia pura.
E aqui está o truque genial: enquanto você lê Sontag desconstruindo a fotografia, você está olhando para uma imagem de pessoas olhando para uma imagem. É como se a capa dissesse: “Bem-vindo ao labirinto de espelhos. Não há saída. Você está preso em camadas infinitas de mediação visual.”
A escolha dessa imagem específica não é acidental. O daguerreótipo representa os primórdios da fotografia — exatamente o ponto histórico onde Sontag inicia sua análise. E o gesto de segurar o retrato de família encapsula todos os temas do livro: fotografia como memória, como posse, como forma desesperada de capturar e congelar o tempo.
A mulher te encara. Através de quase 200 anos, através de uma fotografia de uma fotografia impressa num livro sobre fotografia que você segura nas mãos. Quantas camadas de mediação existem entre você e aquele olhar original?
Sontag nem precisava escrever nada. A capa já conta a história toda.
A Profeta da Imagem
Sontag escreveu seis ensaios que, juntos, formam uma espécie de autópsia filosófica da fotografia. Ela não estava interessada em te ensinar composição ou valores de exposição. Ela queria entender o que acontece quando transformamos o mundo em imagens. E mais importante: o que essas imagens fazem com a gente.
O livro começa com uma provocação brutal: “Na caverna de Platão, as imagens na parede deixam os prisioneiros pensando que aquilo é o real. Na nossa era, a fotografia faz o oposto — nos faz pensar que já conhecemos o real porque vimos sua imagem.”
Sontag argumenta que fotografar é, essencialmente, apropriar-se da coisa fotografada. É uma forma suave de poder. Quando você aponta a câmera para alguém, há uma relação de dominação acontecendo ali. Não à toa ela compara a câmera a uma arma — ambas disparam, ambas capturam, ambas podem violar.
E aqui está algo que vai ecoar forte em 2025: ela já falava sobre como estamos nos tornando viciados em experienciar o mundo através das lentes. “A necessidade de ter a realidade confirmada e a experiência intensificada através de fotografias é um consumismo estético ao qual todos estamos viciados”, ela escreveu. Em 1977. Imagine o que diria sobre o Instagram.
O Paradoxo da Consciência Fotográfica
Um dos conceitos mais perturbadores do livro é a ideia de que a fotografia, ao invés de nos tornar mais conscientes da realidade, na verdade nos anestesia. Vemos tantas imagens de guerra, fome, sofrimento, que elas perdem o impacto. A imagem que deveria chocar se torna apenas mais uma no feed infinito.
Mas Sontag não era uma tecnofóbica ranzinza. Ela reconhecia a beleza e o poder da fotografia. O que ela questionava era nossa relação acrítica com as imagens. A fotografia, para ela, é simultaneamente uma forma de conhecimento e uma forma de não-conhecer. Você tira mil fotos de uma viagem e sente que viveu cada momento, mas será que viveu mesmo? Ou estava ocupado demais enquadrando?
Tem um trecho sobre turismo que é devastador: “A atividade fotográfica transforma as pessoas em turistas das suas próprias vidas, em voyeurs da própria experiência.” Pense nisso da próxima vez que estiver fotografando seu café da manhã.
O Que Torna Este Livro Eterno
A genialidade de “Sobre Fotografia” está na sua capacidade camaleônica. Quando você o lê pela primeira vez, provavelmente como estudante de fotografia, ele parece um ataque direto ao que você ama. Sontag pode soar arrogante, dura, até injusta.
Cinco anos depois, quando você relê, percebe que ela estava falando sobre as armadilhas do nosso ofício. As formas sutis como nos enganamos, como estetizamos o sofrimento, como nos escondemos atrás da objetividade da câmera para não nos comprometermos moralmente.
Mais dez anos, outra leitura. Agora você está em 2025, navegando a era da IA gerativa, dos deepfakes, da fotografia computacional. E o livro parece ter sido escrito ontem. Porque Sontag não estava falando sobre filme ou digital — ela estava falando sobre o impulso humano de transformar mundo em imagem. E isso não muda.
O livro funciona como um espelho intelectual. A cada fase da sua vida como fotógrafo, você projeta novas inquietações naquelas páginas e elas respondem de volta. É quase mágico.
Susan e Annie: O Improvável Romance Intelectual
Susan Sontag não era fotógrafa. Era ensaísta, romancista, intelectual pública. Mas sua relação mais duradoura foi com uma fotógrafa: Annie Leibovitz.
As duas se conheceram em 1989, quando Annie fotografou Susan para a revista Vanity Fair. Susan tinha 56 anos, Annie 40. O que começou como uma sessão fotográfica se transformou em uma parceria de 15 anos que terminou apenas com a morte de Sontag em 2004.
Annie sempre foi cautelosa ao falar publicamente sobre o relacionamento — Sontag preferia privacidade absoluta sobre sua vida pessoal. Mas é impossível não ver o impacto daquela convivência nas fotografias que Annie fez depois. Há uma seriedade intelectual, uma consciência crítica sobre o ato de fotografar que se aprofunda no trabalho dela após conhecer Susan.
O último projeto que Susan e Annie fizeram juntas foi particularmente comovente. Em 2004, quando Sontag estava morrendo de leucemia, Annie a fotografou no hospital. São imagens devastadoras de intimidade e mortalidade. E impossível não pensar que Annie estava, conscientemente ou não, lidando com todos aqueles conceitos que Susan escrevera décadas antes sobre fotografia, morte e memória.
Como Sontag Influenciou Leibovitz
Annie Leibovitz nunca escondeu que “Sobre Fotografia” foi um divisor de águas no seu trabalho. Mas a influência não foi imediata ou óbvia. Não foi como aprender uma técnica nova de iluminação.
Foi mais sutil. Mais filosófico.
Antes de Sontag, Annie era conhecida pelo excesso — cenários elaborados, produções gigantescas, celebridades em situações surreais. Ela fotografou John Lennon nu abraçado a Yoko Ono horas antes dele ser assassinado. Fotografou Whoopi Goldberg numa banheira de leite. Demi Moore grávida e nua na capa da Vanity Fair.
Mas depois do encontro com Susan, algo mudou. Não que Annie tenha abandonado o espetáculo — ela ainda faz produções épicas. Mas há uma camada de questionamento que não existia antes. Uma consciência sobre o poder e a responsabilidade de quem está atrás da câmera.
No seu livro “Annie Leibovitz at Work”, ela escreve: “Susan me fez pensar sobre o que significa fotografar alguém. Sobre a relação de poder que existe ali. Sobre o que você está tomando da pessoa e o que está dando de volta.”

É o tipo de reflexão que só acontece quando você internaliza Sontag. Quando você entende que fotografar não é um ato neutro de documentação. É sempre uma escolha moral, estética, política.
Annie também começou a trabalhar mais em projetos pessoais e documentais após conhecer Susan. A série “Women”, fotografando mulheres comuns em vez de apenas celebridades. O projeto “Pilgrimage”, visitando casas e lugares de artistas que a inspiraram. Há uma busca por significado que vai além do glamour da revista de moda.
Por Que Todo Fotógrafo Deveria Ler Este Livro?
Aqui está a verdade nua e crua: você não precisa de mais um tutorial de Lightroom. Você não precisa de mais dicas de composição ou do preset perfeito de cor. O que você precisa é pensar criticamente sobre o que diabos você está fazendo quando aperta aquele botão.
“Sobre Fotografia” não vai te ensinar a fazer fotos melhores no sentido técnico. Vai te ensinar a fazer fotos mais honestas. Mais conscientes. Vai te fazer questionar seus próprios motivos.
Por que você fotografa? O que você busca quando aponta a câmera? Você está documentando ou voyeurizando? Você está revelando ou invadindo? Você está criando consciência ou anestesia?
Estas são perguntas desconfortáveis. Sontag não oferece respostas fáceis porque não existem respostas fáceis. Mas ela te equipa com as ferramentas intelectuais para pensar sobre seu trabalho de forma mais profunda.
E em 2025, com câmeras em todos os bolsos, com bilhões de imagens circulando por segundo, com IA criando fotografias de coisas que nunca existiram, essas questões se tornaram ainda mais urgentes. O que é real? O que é fabricado? Qual a ética da imagem? Como não nos afogarmos nesse tsunami visual?
Sontag não tinha as respostas para a era digital, mas tinha as perguntas certas. E as perguntas certas são mais valiosas que mil respostas prontas.
Hora de Expandir Sua Biblioteca Fotográfica
“Sobre Fotografia” está disponível em várias edições. Se você chegou até aqui, já sabe que este não é um livro qualquer de fotografia. É o livro que questiona todos os outros livros de fotografia.
Garanta sua cópia aqui e junte-se aos fotógrafos que não têm medo de pensar criticamente sobre o próprio trabalho.
Eu tenho esse livro e o li e acredito ser um livro daqueles essenciais sobre fotografia "pensada" e que ajuda a dar estatuto e relevância à técnica.
Muito legal vc o ter resgatado.