Vivemos tempos curiosos na fotografia. De um lado, temos a busca incessante pela nitidez digital absoluta. Do outro, um retorno visceral à química, ao grão e ao erro controlado. Mas o que conecta um fotojornalista brasileiro que cobriu a era de ouro da revista O Cruzeiro a um jovem fotógrafo de Los Angeles que está redefinindo o uso do filme colorido no Instagram?
A resposta não está na câmera, nem na lente. Está em um livro escrito em 1980 por um filósofo francês que chorava a morte da mãe. A resposta está em Roland Barthes.
Hoje, quero te convidar para uma viagem visual que vai do preto e branco irônico das ruas do Rio de Janeiro aos neons sobrepostos da noite americana. Vamos falar de Flávio Damm, Linus (and his Camera) e os conceitos de Studium e Punctum.
O Palco da Realidade: O Studium
Para entender a genialidade desses dois fotógrafos, precisamos primeiro entender o chão onde eles pisam. Barthes chamava isso de Studium.
O Studium é o interesse geral. É aquilo que faz você olhar para uma foto e dizer: “Ah, que bela composição”, ou “Olha, é o Rio de Janeiro nos anos 50”, ou “Que técnica incrível de dupla exposição”. O Studium é educado, é cultural. É a base técnica que o Rafa Lopes (meu convidado na última live) tanto domina e admira.
No caso de Flávio Damm, o Studium é o fotojornalismo clássico. É a Leica na mão, o enquadramento limpo, a narrativa histórica. No caso de Linus, o Studium é a estética do filme Cinestill 800T, com seus halos vermelhos em torno das luzes (o famoso halation) , a atmosfera cinematográfica e a complexidade técnica de calcular 15 exposições no mesmo negativo.
Mas se a fotografia parasse no Studium, ela seria apenas “bonita”, e sabemos que de fotos bonitas o Instagram está cheio. O que torna uma imagem eterna é o segundo elemento.





O Ataque Visual: O Punctum
O Punctum, dizia Barthes, é aquele detalhe que sai da cena para “ferir” o espectador. É o acaso, o acidente, a ironia, o detalhe que não deveria estar ali, mas que, por estar, muda tudo.
Flávio Damm: O Punctum da Ironia: Damm não era apenas um “bressoniano” brasileiro; ele tinha um humor que faltava a muitos de seus contemporâneos. Ele buscava o Punctum na ironia, o considero mais próximo de Elliott Erwitt do que do mestre francês, aliás, vale a leitura desse texto:
Foi ele que me fez pegar numa câmera.
Já contei essa história em alguns vídeos e posts do antigo blog: foi uma vendedora de enciclopédias que me provocou a paixão pela fotografia.
Existe uma foto dele, mencionada na nossa conversa, que ilustra isso perfeitamente. Há um outdoor imenso, vendendo um sonho de consumo ou estilo de vida, e logo abaixo, um morador de rua dormindo na exata mesma posição da modelo.
O Studium nos mostra a desigualdade social. Mas o Punctum — o soco no estômago — é a coincidência visual, a mímica cruel da realidade zombando da publicidade. Damm via esses “sorrisos invisíveis” da rua. Ele esperava o momento em que a realidade piscava para ele.
Sua Alma vai Gostar: a Câmara Clara
Pausa rápida na nossa análise: Entender essa diferença entre “gostar” de uma foto (Studium) e ser “tocado” por ela (Punctum) é o que separa quem aperta botões de quem cria arte. Se você quer treinar seu olhar para enxergar além do óbvio, não existe manual de câmera que substitua a leitura de “A Câmara Clara” de Roland Barthes.
É um livro curto, denso e transformador. É a bíblia da filosofia fotográfica.
Linus: O Punctum do Sonho Construído
Agora, vamos avançar décadas no tempo e aterrissar em Los Angeles. Linus (@linusandhiscamera) é um fenômeno. Diferente de Damm, que caçava o Punctum na rua, Linus fabrica o seu próprio Punctum através de uma técnica apuradíssima.
Linus utiliza câmeras de médio formato (como a Mamiya RB67 ou Hasselblad) e filmes cinematográficos para criar sobreposições. Mas não se engane: não é filtro de Photoshop. Ele expõe o mesmo pedaço de filme 2, 10, às vezes 30 vezes.
Imagine a complexidade matemática disso. Se você errar o cálculo da luz em uma das 15 exposições, perdeu o filme todo. O Punctum no trabalho do Linus surge quando essas realidades se chocam. Um rosto feminino que se funde com um letreiro de neon japonês; uma silhueta que contém dentro de si um prédio inteiro.





Enquanto Damm usava o Punctum para nos mostrar a realidade crua, Linus usa a técnica para criar um “sonho lúcido”. Ele sobrepõe camadas de significado, criando uma imagem que nosso cérebro sabe que é impossível, mas nosso coração aceita como verdade. É, como o Rafa Lopes bem definiu, uma técnica orgânica: as bordas se fundem quimicamente, algo que o digital raramente consegue emular com a mesma alma.
O Que Aprendemos com os Dois?
Seja você um purista do preto e branco ou um explorador de cores experimentais, a lição é a mesma:
Domine o Studium: Conheça sua ferramenta. Damm conhecia a velocidade de sua Leica; Linus conhece a latitude de seu filme Cinestill. Sem técnica, não há palco para a arte.
Busque o Punctum: Não se contente com a foto “correta”. Procure o detalhe que desestabiliza. Pode ser um cachorro atravessando uma parada militar (como Damm adoraria) ou a fusão perfeita de uma lágrima com uma gota de chuva em dupla exposição (como Linus faria).
A fotografia não é sobre o que está na frente da lente. É sobre o que fica na sua memória depois que você fecha os olhos.
Voluntas Vult!







