Rembrandt dominava luz e sombra 400 anos antes do Photoshop existir. E agora eu entendo por quê.
Organizamos uma visita guiada à exposição de 69 gravuras originais no Rio. O que vimos com lupas mudou minha forma de pensar fotografia.
Quando você organiza uma visita guiada para sua comunidade, nunca sabe exatamente o que esperar. Pode ser legal. Pode ser educativo. Pode ser apenas mais uma atividade cultural.
Mas quando você passa três horas olhando 69 gravuras originais de Rembrandt com uma lupa na mão, acompanhado de várias pessoas igualmente fascinadas, e ainda acaba dando uma entrevista sobre o mestre holandês... bem, isso vira outra coisa completamente.
Foi exatamente o que aconteceu na visita guiada que a Obscura organizou no Centro Cultural dos Correios, aqui no Rio. E preciso contar essa história.
A VISITA QUE SUPEROU EXPECTATIVAS
A exposição traz 69 gravuras originais de Rembrandt van Rijn (1606-1669), todas pertencentes ao acervo pessoal do curador italiano Luca Baroni. Sim, um cara de 37 anos que coleciona Rembrandts originais e viaja o mundo mostrando essas obras (obrigado, Luca!)
Logo na entrada, a produção nos entregou lupas. E não era frescura – era necessidade. Porque a técnica de água-forte que Rembrandt dominava como ninguém produz detalhes tão minuciosos que você precisa de ampliação para realmente entender o que está vendo.
O Leonardo, responsável pelo educativo, foi excepcional. Ele não apenas contextualizou as obras historicamente – ele nos fez entender por que Rembrandt ainda importa para quem trabalha com imagem hoje. E importa muito.
O QUE A LUPA REVELA
Tem algo profundamente revelador em ver uma gravura de Rembrandt com lupa. Você começa a perceber coisas que a visão normal simplesmente não capta:
Linhas de espessuras variadas que criam gradações de luz impossíveis
Áreas de mordida profunda do ácido criando sombras intensas
Traços delicadíssimos que mal se vê, mas que constroem meio-tons
Decisões conscientes em cada milímetro da imagem
Não é exagero dizer: Rembrandt fazia em 1630 o que a gente tenta fazer com Lightroom hoje. Ele controlava luz, sombra, contraste, áreas de ênfase e narrativa visual com precisão cirúrgica. Só que usando cobre, cera e ácido.
Sem ctrl+Z ou Nano Banana.
A TÉCNICA QUE MUDOU TUDO: ÁGUA-FORTE
Durante a visita, a pergunta que mais ouvi foi: “Mas como ele fazia isso?”
A técnica se chama água-forte (ou etching, em inglês), e é fascinante. Deixa eu te explicar o processo que Rembrandt dominava:
O PROCESSO PASSO A PASSO
1. A PREPARAÇÃO Rembrandt começava com uma placa de cobre polida. Sobre ela, aplicava uma camada de cera e resina – uma mistura que protegia o metal do ácido. Essa camada era escura, para criar contraste com o cobre exposto.
2. O DESENHO Usando uma agulha especial (chamada buril), ele desenhava diretamente sobre a cera. Onde a agulha passava, a cera era removida e o cobre ficava exposto.
Era como desenhar em papel – mas permanente. Qualquer erro ficava registrado. Qualquer traço contava.
3. O BANHO DE ÁCIDO (A MÁGICA) A placa era mergulhada em ácido diluído (geralmente ácido clorídrico ou nítrico em água – daí o nome “água-forte”). O ácido “mordia” o metal onde a cera havia sido removida, criando sulcos.
E aqui está o truque que Rembrandt dominava como ninguém: quanto mais tempo no ácido, mais profundo o sulco. Ele controlava isso magistralmente – mergulhava a placa, tirava, cobria certas áreas com verniz protetor e mergulhava de novo.
Assim, na mesma placa, ele criava:
Sulcos profundos (que seguravam mais tinta = áreas escuras)
Sulcos rasos (pouca tinta = tons médios)
Linhas delicadíssimas (quase imperceptíveis = altas luzes)
Era assim que ele construía suas graduações de luz e sombra. Controlando a profundidade da mordida do ácido.
4. A IMPRESSÃO Depois de limpar a cera protetora, a placa era coberta com tinta usando um rolo. Então, vinha a parte delicada: limpar a superfície à mão, deixando tinta apenas dentro dos sulcos gravados.
Um papel úmido era colocado sobre a placa. Ambos passavam por uma prensa de alta pressão. O papel absorvia a tinta dos sulcos, criando uma impressão invertida (espelhada) do desenho original.
E cada impressão era única. Rembrandt experimentava com diferentes papéis, variava a quantidade de tinta, limpava a placa de formas distintas. Duas “cópias” da mesma gravura podiam ter aparências bem diferentes.
POR QUE ISSO ERA TÃO DIFÍCIL?
Descobri ontem um vídeo feito na Casa Rembrandt (seu ateliê em Amsterdam, hoje um museu) mostrando o processo completo. É inacreditável o quanto era elaborado.
O ácido não perdoa. Muito fraco, e as linhas não aparecem. Muito forte, e elas ficam irregulares, grossas, feias. A temperatura importa. O tempo importa. A composição do metal importa.
Rembrandt era um obstinado. Ele testava, experimentava, refazia. Combinava água-forte com ponta-seca (desenhar diretamente no cobre sem ácido) para criar texturas impossíveis. Trabalhava e retrabalhava a mesma placa, criando diferentes “estados” de uma mesma obra.
Ele não estava apenas reproduzindo imagens. Ele estava construindo luz.
O QUE REMBRANDT ENSINA A FOTÓGRAFOS
Olhando aquelas 69 gravuras com lupa, uma coisa ficou clara: Rembrandt entendia de imagem melhor que 99% dos fotógrafos modernos.
Ele sabia que luz não é o que você captura – é o que você constrói.
Cada área de sombra era uma decisão. Cada reflexo era planejado. Cada gradação de meio-tom era intencional. Ele não “registrava” a realidade – ele a orquestrava.
E fazia isso sem câmera, sem Lightroom, sem histogram, sem preview instantâneo.
Pensa na paciência necessária: desenhar na cera, mergulhar no ácido, esperar, limpar, cobrir áreas, mergulhar de novo, esperar, limpar a placa, preparar o papel, passar na prensa... e só então ver o resultado.
Se não ficasse bom? Recomeça.
É o oposto da fotografia digital moderna, onde fazemos 500 cliques e escolhemos o melhor depois. Rembrandt fazia um “clique” por vez. E cada um levava horas ou dias.
Por que temos tanta pressa atualmente em criar algo tão único quanto uma imagem?
A EXPERIÊNCIA DE VER EM GRUPO
Uma das coisas mais legais de organizar essa visita foi ver a comunidade Obscura reunida presencialmente. Gente que se conhecia apenas online, trocando ideias sobre composição, luz, narrativa visual.
Teve momento de silêncio contemplativo (aquelas gravuras comandam respeito). Teve discussão acalorada sobre técnica. Teve gente emocionada. Teve até quem pedisse para ficar mais tempo na frente de uma obra específica.
E no final, aquela foto clássica de grupo. Que sempre fica torta, sempre tem alguém piscando, mas que registra algo importante: pessoas que se importam com imagem, juntas, aprendendo.



INFORMAÇÕES PRÁTICAS
Onde: Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro
Até quando: de 24 de Setembro até 8 de Novembro
Quanto: Entrada gratuita
Horário: Terça a sábado, das 12h às 19h
Vale a pena? Absolutamente sim. Principalmente se você trabalha com imagem.
Dicas:
Reserve pelo menos 2 horas (você vai querer ver com calma)
Vá em dia de semana se possível (menos movimento)
Peça a lupa na entrada (faz TODA diferença)
Não tenha pressa – essas obras exigem tempo
AGRADECIMENTO:
Um agradecimento especial a todos que participaram da visita – vocês tornaram a experiência ainda melhor. Ao Leonardo do educativo, pela paciência e conhecimento. E ao Luca Baroni, por adquirir, preservar e compartilhar essas obras.
Adriana de Oliveira, Toshio Kobashi, Ulisses Oliveira, Daniel Ferreira, Raphael Monteiro, Ricardo Dias e seu pai: meu muitíssimo obrigado, de coração! Vocês deixaram minha quarta mais feliz!