Tony Ray-Jones: O Gênio Esquecido que Inventou Martin Parr
Ele morreu aos 30 anos, fotografou por apenas uma década, e mudou para sempre a fotografia documental britânica. Por que ninguém fala dele?
Inglaterra, anos 60
Imagine Martin Parr sem as cores saturadas. Sem o flash de anel. Apenas preto e branco, mas com a mesma ironia afiada, o mesmo olhar para o absurdo cotidiano, a mesma capacidade de transformar o banal britânico em poesia visual.
Agora imagine que esse fotógrafo morreu aos 30 anos, em 1972, sem ver seu único livro publicado. E que Martin Parr o chama de “uma das minhas maiores inspirações iniciais”.
Esse fotógrafo é Tony Ray-Jones. E é criminoso que você provavelmente nunca tenha ouvido falar dele (admito: foi escrevendo sobre Parr que cheguei em seu nome, doce surpresa, que fotos incríveis!)
Acredito que você irá gostar de conhecer o seu pupilo, Martin Parr, que faleceu esse mês, escrevi sobre ele aqui:
A Origem: Um Órfão com Uma Leica
Holroyd Anthony Ray-Jones nasceu em 7 de junho de 1941, em Wells, Somerset. Seu pai, Raymond Ray-Jones, era pintor e gravador — suas obras estão na coleção do Victoria & Albert Museum, mas Tony nunca o conheceu: Raymond morreu de tuberculose quando o filho tinha apenas oito meses.
Criado pela mãe fisioterapeuta, Tony cresceu mudando de cidade em cidade — Tonbridge, Little Baddow, Hampstead — até estudar design gráfico na London School of Printing nos anos 1950. Foi ali que pegou uma câmera pela primeira vez.
Mas o que transformou Tony Ray-Jones num gênio aconteceu longe da Inglaterra.
Nova York: Onde Tudo Mudou
Em 1961, aos 19 anos, Ray-Jones ganhou uma bolsa para estudar na Yale University School of Art. As fotos que o aprovaram? Tiradas de dentro de um táxi no norte da África. Nem ele sabia direito o que estava fazendo — mas alguém viu algo ali.
Em Yale, seu talento explodiu. Antes mesmo de se formar, já recebia encomendas da Saturday Evening Post e Car and Driver. Mas o verdadeiro divisor de águas veio quando ele entrou no lendário Design Laboratory de Alexey Brodovitch, no estúdio de Richard Avedon, em Manhattan.
Eu comento sobre a importância do Brodovitch no mercado editorial e como sua influência moldou o Irving Penn nessa live (está no ponto do comentário, só clicar):
Brodovitch era uma figura quase mística — diretor de arte revolucionário da Harper’s Bazaar, mentor de Irving Penn e Avedon, obcecado por “frescor visual” e expressão pessoal. Ele viu algo em Ray-Jones e o empurrou para estudar Cartier-Bresson, Brassaï, Atget.
Mas não foi só Brodovitch. Em Nova York, Tony conheceu a geração que estava reinventando a fotografia de rua: Garry Winogrand, Joel Meyerowitz, Lee Friedlander. Eram os anos 1960. Robert Frank havia acabado de publicar The Americans (1959). A fotografia documental estava explodindo em subjetividade, ironia, experimentação.
Agora dá uma respirada…imagina o time de peso que Tony estava encontrando em Nova York, invejável, né? :)
Ray-Jones absorveu tudo. Passou anos fotografando Nova York, Detroit, Chicago, Harlem — onde morou por um tempo, mergulhando na cultura negra americana e nas questões de justiça social que o marcaram profundamente.
Quando voltou para a Inglaterra em 1965, aos 24 anos, ele não era mais o mesmo fotógrafo. E a Inglaterra que o esperava estava mudando rápido demais.
“Quero Documentar a Inglaterra Antes que Ela Se Americanize”
Ao retornar, Ray-Jones ficou chocado com duas coisas:
A Inglaterra estava se americanizando — TV americana, música americana, filmes americanos dominando tudo.
Ninguém se importava com fotografia documental não-comercial — editoras rejeitavam projetos, galerias ignoravam o meio, fotógrafos eram vistos como prestadores de serviço, não artistas.
Foi então que ele descobriu um livro sobre costumes ingleses antigos e teve uma epifania: ele iria documentar o jeito inglês de viver antes que desaparecesse para sempre.
Em 1968, na revista Creative Camera, ele escreveu sua missão com uma clareza brutal:
“Meu objetivo é comunicar algo do espírito e da mentalidade dos ingleses, seus hábitos e seu modo de vida, as ironias que existem na maneira como fazem as coisas, em parte por suas tradições e em parte pela natureza de seu ambiente... Para mim, há algo muito especial no ‘jeito de vida’ inglês e desejo registrá-lo do meu ponto de vista particular antes que se americanize e desapareça.”
E foi exatamente isso que ele fez.
O Olhar de Ray-Jones: Humor, Melancolia e “Loucura Gentil”
Entre 1966 e 1970, Tony Ray-Jones viajou incessantemente pela Inglaterra com sua Leica M escondida dentro de um casaco de chuva velho e surrado — que ele chamava de “casaco de exibicionista”. Ele se tornava invisível. Esperava. Observava. Clicava.
Ele fotografou:
Praias decadentes (Brighton, Bournemouth, Ramsgate)
Festivais folclóricos (Bacup Coconut Dancers, Dickens Festival)
Eventos da classe alta (Trooping the Colour, Derby Day em Epsom, Crufts Dog Show)
Mercados de rua (Brick Lane)
Parques e feiras (Wormwood Scrubs)
Pessoas comuns fazendo coisas comuns — mas capturadas em momentos de absurdo poético
Suas imagens eram surrealistas sem serem manipuladas. Ele não encenava nada. Apenas esperava o mundo se organizar de forma estranha diante de seus olhos.
Uma mulher idosa comendo torta ao lado de um urso de pelúcia empalhado. Crianças brincando em estruturas industriais decadentes. Turistas constrangidos tentando se divertir sob céus cinzentos. A classe trabalhadora e a aristocracia compartilhando o mesmo espaço — mas nunca se olhando.
Como ele próprio descreveu:
“Tentei mostrar a tristeza e o humor em uma loucura gentil que prevalece nas pessoas. As situações são às vezes ambíguas e irreais, e as justaposições de elementos aparentemente não relacionados, e ainda assim as pessoas são reais. Isso, espero, ajuda a criar um sentimento de fantasia.”
E então ele acrescentou a frase que definiria sua visão:
“A fotografia pode ser um espelho e refletir a vida como ela é, mas também acho que talvez seja possível caminhar, como Alice, através do espelho, e encontrar outro tipo de mundo com a câmera.”
A Técnica: Composições Complexas e Espaços Vazios
O que tornava Ray-Jones único não era apenas o que ele fotografava, mas como ele fotografava.
Ao contrário dos fotógrafos de rua americanos — que priorizavam o momento decisivo, o gesto isolado —, Ray-Jones construía composições em camadas, onde múltiplos elementos coexistiam no quadro sem hierarquia clara. ( Alex Webb, vem pra cá rapidinho…)
Os espaços vazios eram tão importantes quanto os cheios. Ele usava o fundo, as distâncias, os objetos sem função narrativa óbvia para criar tensão visual. Suas fotos pediam para serem lidas, não apenas vistas.
Ele adorava William Hogarth — o pintor e gravurista inglês do século XVIII que satirizava a sociedade britânica com humor mordaz. Como Hogarth, Ray-Jones usava a estrutura de classes inglesa como ferramenta narrativa. A demarcação social era visível nas ruas, nas praias, nos parques.
E havia algo mais: compaixão sem sentimentalismo. Ele nunca ridicularizava seus retratados. Havia ironia, sim, mas também ternura. Ele os via como humanos tentando encontrar prazer onde podiam — e isso, para ele, era digno de respeito.
O Livro Que Ninguém Quis Publicar
Em 1968, Ray-Jones tentou publicar England by the Sea, um livro sobre suas fotos de praias britânicas. As editoras rejeitaram. Disseram que ninguém se interessaria.
Ele não desistiu. Continuou fotografando. Continuou refinando seu projeto. Continuou acreditando que aquilo importava.
Mas o tempo estava acabando.
A Morte Prematura: 30 Anos e Uma Década de Genialidade
No final de 1971, trabalhando como professor visitante no San Francisco Art Institute, Tony começou a sentir exaustão extrema. Em fevereiro de 1972, foi diagnosticado com leucemia aguda, uma forma rara e agressiva.
O tratamento nos Estados Unidos era caro demais. Em 10 de março de 1972, ele voou de volta para Londres e foi imediatamente internado no Royal Marsden Hospital.
Três dias depois, em 13 de março de 1972, Tony Ray-Jones morreu. Tinha 30 anos.
Ele nunca viu seu livro publicado.
A Day Off: O Livro Póstumo Que Mudou Tudo
Em 1974, dois anos após sua morte, a Thames & Hudson finalmente publicou A Day Off: An English Journal — uma seleção das melhores fotos de Ray-Jones sobre o lazer inglês.
(não me pergunte o motivo, mas o livro aqui custa apenas 2.500 reais contra 36 dólares lá fora…)
O impacto foi imediato. Críticos reconheceram que estavam diante de um gênio. Fotógrafos jovens descobriram uma nova forma de olhar para seu próprio país.
E um deles era Martin Parr.
A Influência em Martin Parr: “Ele Me Mostrou o Que Era Possível”
Martin Parr tinha 20 anos quando A Day Off foi publicado. Ele estava começando a fotografar seriamente. E quando viu o trabalho de Ray-Jones, algo clicou.
Décadas depois, Parr diria:
“Tony Ray-Jones foi uma das minhas inspirações iniciais como fotógrafo. Suas imagens me mostraram o que era possível fotografando meu próprio país.”
A conexão é inegável. Compare as fotos de Ray-Jones nos anos 1960 com The Last Resort de Parr nos anos 1980. A diferença? Cor. O DNA visual é o mesmo:
Olhar antropológico sobre o lazer britânico
Ironia sem crueldade
Interesse pela classe trabalhadora
Foco em rituais sociais bizarros
Composições densas e em camadas
Em 2012, Parr revisitou os contatos de Ray-Jones no arquivo do National Media Museum em Bradford e encontrou imagens nunca vistas. Ele as curou para uma exposição chamada “Only in England”, que colocava lado a lado:
60 fotos de Tony Ray-Jones (1966-1969)
57 fotos de Martin Parr de The Non-Conformists (1975-1980)
O resultado era perturbador: as fotos conversavam como se tivessem sido feitas pela mesma pessoa. Parr havia escolhido deliberadamente as imagens “mais Parr” de Ray-Jones para mostrar o quanto ele devia ao mestre.
Como escreveu Parr:
“Não havia um livro de Tony Ray-Jones disponível há muitos anos. Esta publicação corrige essa falha. Sua contribuição imensa à fotografia documental britânica merece ser celebrada.”
O Legado Invisível: Ele Mudou Tudo Sem Ser Famoso
Tony Ray-Jones morreu desconhecido fora dos círculos fotográficos. Mas sua influência é impossível de medir.
Ele provou que:
Fotografia documental podia ser subjetiva e pessoal
Humor e ironia tinham lugar no documentário sério
Era possível fotografar o próprio país com distância crítica e afeto simultâneos
Composição complexa não era incompatível com espontaneidade
Ele influenciou diretamente:
Martin Parr (óbvio)
Chris Steele-Perkins (Magnum Photos)
Daniel Meadows (fotógrafo documental)
Simon Roberts (fotógrafo de paisagens britânicas)
E, indiretamente, gerações de fotógrafos que nunca ouviram falar dele mas bebem de uma fonte que ele ajudou a criar.
Sean O’Hagan, crítico do Guardian, resumiu perfeitamente:
“Em sua vida curta, ele ajudou a criar um jeito de ver que moldou várias gerações de fotografia britânica.”
Por Que Ele É Tão Pouco Conhecido?
A resposta é simples e trágica: ele morreu jovem demais.
Quando você morre aos 30 anos, sem livro publicado, sem carreira consolidada, sem tempo para se autopromover, você depende de outras pessoas contarem sua história. E a história de Ray-Jones só começou a ser realmente contada na década de 2000.
Sua primeira grande retrospectiva aconteceu apenas em 2004 — 32 anos após sua morte — no National Museum of Photography, Film & Television em Bradford.
Seu arquivo — 700 fotos, 1.700 negativos, 2.700 contatos, 10.000 slides, cadernos e correspondências — está preservado no National Science and Media Museum em Bradford desde 1993.
Martin Parr fundou a Martin Parr Foundation em 2017 justamente para preservar trabalhos como o de Ray-Jones: fotografia britânica importante mas subvalorizada.
As Peculiaridades de Tony Ray-Jones
Algumas coisas que tornam Ray-Jones único:
1. O Casaco de Exibicionista
Ele escondia a Leica dentro de um casaco velho e surrado, abria rapidamente e clicava. Ficava invisível. As pessoas mal percebiam.
2. Amor por William Hogarth
Ele adorava as gravuras satíricas de Hogarth sobre a sociedade inglesa do século XVIII. Via sua fotografia como uma continuação desse olhar crítico e afetuoso.
3. Ódio pela Fotografia Comercial
Apesar de ter estudado com Avedon, ele desprezava a fotografia comercial. Queria fazer arte, não publicidade. Isso o tornou pobre — mas livre.
4. Ativismo Social Silencioso
Ele morou em Harlem, documentou a vida dos negros americanos, tornou-se “irmão de sangue” de um chefe Hopi no Arizona. Planejava um grande projeto sobre injustiças contra nativos americanos. A leucemia o impediu.
5. Perfeccionismo Brutal
Ele era durríssimo consigo e com os outros. Um amigo disse: “Ele se tornou uma Joana d’Arc purista nas críticas. Nem sempre era necessário chamar um ás de ás. Ele podia destruir minhas fotos — e a mim — com dureza excessiva.”
6. Influência do Cinema
Ray-Jones adorava cinema. Suas fotos têm algo de Neorrealismo Italiano — aquela mistura de realismo cru com poesia visual.
Como Conhecer Tony Ray-Jones Hoje
📚 Livro essencial:
A Day Off: An English Journal (1974, Thames & Hudson) — difícil de encontrar, mas vale ouro
📚 Livros mais acessíveis:
Tony Ray-Jones (2019, RRB Photobooks / Martin Parr Foundation) — com ensaio de Liz Jobey e introdução de Martin Parr
Only in England (2013, National Science and Media Museum) — catálogo da exposição com Parr
🌐 Online:
Arquivo completo no National Science and Media Museum: scienceandsociety.co.uk
Martin Parr Foundation: martinparrfoundation.org
A Frase Que Resume Tudo
David Monongye, o xamã Hopi de 89 anos que havia se tornado pai espiritual de Tony, escreveu para a viúva Anna após a morte dele:
“Não viva em seu luto... Não estamos sozinhos neste mundo. O Grande que move todas as coisas deve ter precisado de Tony. Ele não está morto, apenas tirou seu casaco terrestre.”
Tony Ray-Jones fotografou por apenas uma década. Publicou apenas um livro — postumamente. Morreu aos 30 anos, pobre e desconhecido.
E ainda assim, mudou para sempre a forma como olhamos para nós mesmos.
Conclusão: O Gênio que o Brasil Precisa Conhecer
Se você é fotógrafo e nunca ouviu falar de Tony Ray-Jones, você tem uma dívida com a história da fotografia.
Se você ama Martin Parr, precisa conhecer o homem que o inventou.
Se você fotografa seu próprio país, sua própria cultura, suas próprias estranhezas cotidianas — você está, conscientemente ou não, seguindo os passos de um órfão britânico que escondeu uma Leica num casaco velho e decidiu olhar para a Inglaterra como Alice olhando através do espelho.
Ele morreu jovem. Mas deixou um legado que ainda está vivo — mesmo que a maioria das pessoas não saiba seu nome. Agora você sabe e tem a responsabilidade de não esquecê-lo.










