Existe um momento na carreira de todo fotógrafo em que a técnica deixa de ser suficiente. Você domina o triângulo de exposição, sabe posicionar flashes, conhece modificadores de luz. Mas algo ainda falta. E esse “algo” pode estar justamente onde você menos espera: no teatro.
Foi assistindo “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), com Kirk Douglas, que eu tive um dos maiores insights da minha vida como fotógrafo. Reparei que os atores mantinham posições artificiais, quase teatrais — cabeças sempre erguidas, corpos em ângulos específicos, mesmo em situações cotidianas como falar ao telefone.
Por quê? A iluminação mandava.
Naquela época, com arcos voltaicos gerando luz dura e direcionada, era a luz que ditava onde e como os atores deveriam se posicionar. A iluminação dirigia a cena.
Iluminar É Dirigir
E se eu te disser que isso ainda acontece hoje, em todos os espetáculos de dança, teatro e até no cinema moderno? E que entender essa dinâmica pode revolucionar sua fotografia?
Foi exatamente sobre isso que conversei com Ana Claudia Magagnin, bailarina profissional que atuou no Ballet Nacional de Buenos Aires e hoje assina a iluminação cênica de espetáculos de dança em Piracicaba. Uma transição fascinante que revela camadas invisíveis do trabalho com luz — camadas que todo fotógrafo deveria conhecer.


A Bailarina Que Enxergava a Luz dos Dois Lados do Palco
Ana dançou desde os 3 anos. Aos 19, foi contratada por uma companhia na Argentina, onde permaneceu por anos, chegando ao cargo de primeira bailarina. Durante toda sua carreira, ela viveu dentro de teatros — e sempre foi observadora curiosa das “zonas proibidas”, aquelas áreas técnicas dos bastidores onde a mágica acontece.
“Nem sempre a gente encontra iluminador que sabe iluminar ballet”, ela conta. “Então a gente ensaia muito tempo, e chega na hora o iluminador estoura a luz e você não consegue fazer metade do que já fez no ensaio.”
Imagine: três meses de preparação, coreografias complexas, giros técnicos como os 32 fouettés (32 giros consecutivos sobre uma perna), e uma luz mal posicionada na sua cara destruindo tudo. A iluminação pode salvar ou arruinar um espetáculo inteiro.
Quando voltou ao Brasil em 2018, Ana começou a dar aulas e montar coreografias. Foi aí que o iluminador do teatro onde trabalhava lhe deu um livro: “Manual do Iluminador de Artes Cênicas”. E a ficha caiu.


“Eu comecei pensando: a figurina das minhas alunas é rosa, vou pôr uma luz rosa. Não! Você vai apagar elas. A questão é: elas estão no amanhecer? No anoitecer? Dentro de uma sala? É isso que a gente tem que pensar.”
A Luz Como Personagem Invisível (Que Manda em Todo Mundo)
Se tem algo que ficou cristalino na nossa conversa é isto: no teatro, a luz é um personagem invisível que dirige toda a narrativa.
E aqui está o paradoxo cruel do iluminador cênico — e que fotógrafos precisam entender: quando tudo dá certo, ninguém percebe o trabalho da luz. Se alguém notou algo específico na iluminação, é porque você errou.
“Se deu tudo certo e ninguém falou nada, é porque está ok”, Ana explica. “Agora, quando a iluminação aparece muito, é porque você tirou o foco do ator.”
Isso me lembrou dos iluminadores da Globo que trabalhavam comigo. Quando conseguiam o efeito perfeito — aquele momento em que a atriz parecia brilhar naturalmente, onde a emoção da cena se intensificava sem você saber exatamente por quê — ninguém aplaudia a luz. Mas se erravam, todo mundo reclamava.
No ballet, essa dinâmica é ainda mais crítica. “O menos é mais. O que tem que aparecer é a bailarina. O que tem que ser esplendecente é a coreografia”, diz Ana. “A iluminação tem que contar a história junto com o bailarino, ela não pode aparecer mais.”
Os Equipamentos: Não É Só Ligar a Luz
Para quem está acostumado com LEDs, tochas de estúdio e flashes, o arsenal de iluminação cênica é outro universo. Ana trabalha com:
→ Elipsoidais: 30 unidades de luz de frente. São refletores de feixe duro e preciso, perfeitos para destacar áreas específicas sem vazar luz para onde não deve.
→ Par 64 com gelatinas: Nas laterais, usando filtros âmbar, branco e azul. É a luz que dá contorno e volume aos corpos.
→ Fresnel: De cima, gerando uma luz mais difusa e envolvente.
→ PC (Plano-Convexo): Para situações muito específicas, quando é preciso um controle intermediário entre o feixe duro do elipsoidal e a difusão do fresnel.
→ LEDs: Mas com ressalva. “Tudo que a gente usa de LED, por exemplo vermelho, a pessoa fica vermelha. Isso vai pra foto, isso vai pra filmagem. Então eu uso LED no contra, porque a luz de frente e lateral consegue eliminar essa anomalia.”
Essa sacada é OURO para fotógrafos. Quantas vezes você fotografou eventos com iluminação LED colorida e o tom de pele ficou destruído? Ana resolve isso trabalhando em camadas: LED colorido no contraluz (que cria atmosfera e desenho), mas mantendo fontes quentes na frente e laterais para preservar os tons de pele.
A Física do Movimento: Iluminar Corpos Que Voam
Um dos maiores desafios da iluminação de dança é algo que fotógrafos também enfrentam: como iluminar corpos em movimento rápido, mantendo volume, profundidade e continuidade?
“Não é só a iluminação de frente”, Ana explica. “A gente precisa da iluminação da lateral, que dá o contorno, e da iluminação que vem de trás, que é o contra. Nas diagonais também. Tudo isso é muito sutil.”
Ela trabalha com o conceito de tridimensionalidade: esculpir o corpo do bailarino no espaço usando múltiplos ângulos de luz. É exatamente o que aprendemos em fotografia de retrato, mas aplicado a alvos que saltam, giram e atravessam o palco em segundos.
E aqui entra uma lição brutal que aprendi fotografando na TV Globo e que Ana confirmou no teatro: atores e bailarinos experientes sabem encontrar a luz. Os iniciantes, não.
“Bailarinos cascudos param exatamente onde a luz está. Eles sabem que se saírem dali vão ficar no escuro, e isso tira toda a magia da cena”, diz Ana. “Agora, quem está começando não entende. Tem que sentir o calorzinho no rosto para saber que está bem iluminado.”
Trabalhei com Tony Ramos, Cássio Gabus Mendes, atores veteranos que reagiam à iluminação instintivamente. Eles chegavam na marca, ajustavam microscopicamente a posição do rosto, e pronto: estavam no sweet spot da luz. Atores novos ficavam completamente fora do feixe, mesmo após ensaios técnicos.
O Ensaio Técnico: Onde Fotógrafos e Iluminadores Deveriam Conversar (Mas Não Conversam)
Ana faz questão de assistir ensaios das escolas de dança antes de montar a iluminação no teatro. “Sempre tem contexto: aqui é uma floresta, aqui é o amanhecer, aqui é dentro de uma sala. É isso que a gente tem que pensar.”
E antes de abrir a plateia, ela faz testes com os fotógrafos e videomakers que vão registrar o espetáculo. “A gente faz teste antes, para configurar a câmera, para também não estragar o trabalho do fotógrafo. Porque depois vão falar que a iluminadora foi péssima, que deixou a luz baixa. Vamos trabalhar em conjunto.”
Essa é uma mudança de paradigma fundamental: a iluminação cênica não é um obstáculo para o fotógrafo. É uma aliada — desde que você entenda a lógica dela.
As principais dicas de Ana para fotógrafos:
1. Troque ideia com o iluminador ANTES
Pergunte qual vai ser a base da iluminação, que cores serão usadas, se há momentos de blackout ou mudanças drásticas. Isso permite ajustar ISO, abertura e velocidade previamente.
2. Respeite o eixo da luz
Aprendi isso da forma mais dura fotografando a minissérie “A Pedra do Reino” com o diretor Luiz Fernando Carvalho. Ele me exigia ficar colado na câmera. Quando eu fugia do eixo para fazer fotos “mais bonitas”, ele recusava tudo. “Eu iluminei para AQUELE eixo. Você não está respeitando a luz.” Parece opressão, mas é técnica. A iluminação foi desenhada para funcionar de um ângulo específico — e isso define a narrativa visual da cena.
3. Nunca, jamais, em hipótese alguma: use flash
Ana foi taxativa: “Se você usar flash no teatro, você acabou com a minha iluminação.” Flash frontal destrói toda a modelagem cuidadosa, o contraste dramático, a atmosfera. É inaceitável.
4. Entenda que você está fotografando LUZ PLANEJADA, não luz disponível
Iluminação cênica é fotografia planejada ao extremo. Cada feixe tem função narrativa. Documentar isso exige sensibilidade para LER a luz, não apenas registrá-la.
Cores, Emoções e a Psicologia da Luz
“Como você escolhe as cores?”, perguntei.
“Depende do contexto emocional. Elas estão no amanhecer? No anoitecer? Num momento de tensão? A cor precisa sustentar a narrativa, não apenas ‘ficar bonita’.”
Ana evita o óbvio. Figurino rosa não significa luz rosa — na verdade, isso apagaria as bailarinas. A escolha da cor vem da intenção dramática, não da estética superficial.
E aqui está uma lição valiosa para fotógrafos que trabalham com gels e LEDs coloridos: cor tem significado. Azul pode ser frieza, solidão, noite. Vermelho pode ser paixão, perigo, urgência. Âmbar é calor, nostalgia, intimidade. Usar cor sem intenção é poluição visual.
A Fumaça: Terror dos Fotógrafos, Ferramenta dos Iluminadores
“Você usa muito fumaça?”, perguntei, sabendo que é o terror de quem fotografa shows e teatro.
“Uso, mas com máquina de haze, não aquela fumaça pesada que deixa todo mundo sem ver nada. O haze fica como uma neblina sutil. Dá desenho, deixa a luz mais densa, dá clima.”
O haze (névoa fina) é genial porque torna a luz visível. Aqueles feixes que cortam o palco, que desenham trajetórias no ar — isso só existe com partículas suspensas refletindo a luz. Para iluminadores, é ferramenta essencial. Para fotógrafos, é desafio técnico (mas também oportunidade estética, se você souber usar).
O Problema da Projeção e dos Painéis de LED
Um dos maiores desafios que Ana enfrenta: projeções e painéis de LED gigantes no fundo do palco.
“Quando tem painel de LED enorme atrás, ele é uma luz de contra. Se eu não iluminar o suficiente na frente, dá uma briga. Já aconteceu de um cara pôr o painel a 70% e eu pensei: meu Deus, o que eu faço?”
Fotógrafos que cobrem eventos corporativos e shows sabem bem: aquele telão gigante no fundo vira uma fonte de luz competindo com a iluminação principal. O resultado? Pessoas subexpostas com fundos estourados, ou vice-versa.
A solução de Ana: pedir para baixar a intensidade do painel e compensar com mais luz frontal e lateral. É trabalho de equipe.
Machismo, Persistência e a Disciplina do Ballet
Ana é a primeira iluminadora concursada da Prefeitura de Piracicaba e do Teatro Municipal da cidade. E sim, enfrentou resistência.
“Tipo, você não vai conseguir fazer tal coisa. Aí eu vou lá e faço. Porque às vezes são refletores pesados. Ou, você vai conseguir carregar tal coisa? Óbvio que tem coisas que eu não consigo, mas tudo ali, a base do que eu tenho que fazer, eu dou conta.”
Mas o que mais a ajudou a vencer preconceitos foi justamente a formação no ballet. “O ballet exige disciplina e persistência. Se não deu certo, você vai fazer de novo até dar certo. Isso é o que me ensinou o ballet, e eu uso sempre na iluminação.”
Conexões elétricas que não funcionam, refletores que precisam ser reposicionados, programações que travam — tudo exige recomeçar até acertar. A mentalidade de bailarina (ensaiar 8 horas por dia durante meses para um espetáculo de 2 horas) é perfeita para a iluminação cênica.
A Dica de Ouro: Aprenda Com a Natureza
No final da conversa, pedi uma dica para fotógrafos que querem melhorar sua compreensão de luz. A resposta de Ana foi cirúrgica:
“Acho que a melhor iluminação é a luz natural. Aprender a fotografar com a luz natural. O equipamento é ótimo, é maravilhoso, mas quando você entende a luz da natureza — do amanhecer, do sol do meio-dia, da sombra — você aprende com a natureza, porque não se compara. Por mais equipamento que a gente coloque no cenário, não se compara o anoitecer da nossa mãe natureza.”
Isso me lembrou de duas histórias:
1) Sérgio Zagl, meu amigo e excelente editor de fotografia, sempre me dizia: “Renato, só tem uma luz, o resto é fill light.” Ele me forçava a identificar a fonte principal, a luz-chave, antes de pensar em qualquer preenchimento. Levei anos para internalizar isso.
2) Afonso Beato, diretor de fotografia lendário, estava conosco em Petra, na Jordânia, gravando uma novela. Eu esperava caminhões de equipamento chegando. Chegamos no deserto e ele tinha apenas difusores e rebatedores. Questionei. Ele respondeu: “Renato, dá uma olhada: eu tenho a iluminação perfeita aqui. Agora é só controlar e entender o que eu quero.”
O diabo é diabo porque é velho. Mestres de luz chegam num ponto em que trabalham COM a luz disponível, não CONTRA ela.
O Que Fica Dessa Conversa
Fotografia e iluminação cênica são irmãs. Ambas esculpem com luz, criam atmosferas, dirigem o olhar, contam histórias sem palavras. A diferença é que no teatro, a luz literalmente dirige a cena — ela determina onde os atores ficam, como se movem, quando aparecem ou desaparecem.
Entender isso muda completamente a forma como você fotografa eventos, espetáculos, shows, até retratos em estúdio. Você deixa de “iluminar para fazer uma foto bonita” e passa a iluminar para contar uma história, criar emoção, dirigir a atenção.
Se você é fotógrafo e nunca parou para estudar iluminação teatral, está perdendo uma camada inteira de conhecimento. E se você fotografa espetáculos, dança, teatro ou shows, converse com os iluminadores. Eles não são obstáculos — são aliados que podem elevar seu trabalho a outro nível.
Porque no final, como Ana disse: “Saber fotografar com luz natural, entender de onde vem a sombra, o eixo da luz. Ver a essência da foto. Essa é a dica mais importante e valiosa.”














